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Relicário de Afetos: A Exposição que Tocou Corações

 Relicário de Afetos: A Exposição que Tocou Corações

No coração de Ibitu, entre as memórias que resistem ao tempo e os sons que ainda ecoam nas festas de Santos Reis, vive a lembrança de José Gonçalves, figura emblemática, guardião da ordem e da cultura local. Chamado por muitos de “xerife”, Seu Zé não apenas zelava pela tranquilidade da comunidade, mas também embalava seus dias com os acordes da viola, instrumento que se tornou extensão de sua alma.

Nascido na cidade de Barretos, mudou-se para Ibitu no início da década de 1940, onde se casou em 1942. Ali construiu sua vida e uma família numerosa: foram 12 filhos, dezenas de netos e muitos bisnetos. Faleceu há cerca de 12 anos, mas sua presença continua viva nas histórias contadas, nas tradições mantidas e, sobretudo, na música que deixou como legado.

Autodidata, com ouvido afiado e sensibilidade rara, aprendeu a tocar sozinho, como quem decifra segredos antigos gravados nas cordas. A viola que empunhava, presente recebido com gratidão ainda na infância, das mãos generosas de dona Maria Rosa, que viu nele aptidão, tornou-se símbolo de sua trajetória. Tocava modas de viola e animava as celebrações de Santos Reis com a mesma firmeza com que mantinha a paz no povoado.

Décadas depois, essa mesma viola reapareceu como num gesto mágico. Ao ver uma fotografia de 1940 na exposição que montei em Ibitu — um registro raro da Companhia de Reis da Cachoeirinha — Hildebrando Gonçalves, seu filho, reconheceu o pai na imagem e correu para buscar o instrumento que ele segurava naquele momento congelado no tempo. Trouxe-a com reverência, como quem carrega um relicário. Embora hoje silenciosa, a viola continua a tocar corações e a avivar lembranças.

Eu (Sueli) segurando a histórica fotografia da Companhia de Reis da Cachoeirinha, ao lado de Hildebrando Gonçalves, com a viola centenária do pai José Gonçalves, e Armando de Souza, testemunha viva desta história e de outras que contarei futuramente. Um encontro de afetos, lembranças e legado cultural.

E não é para menos: estima-se que essa viola tenha aproximadamente 200 anos. Carrega em sua madeira não apenas o som das festas e dos modões, mas também as marcas do tempo, os gestos de quem a tocou, os silêncios que atravessou. Seu corpo abriga um adorno entalhado, delicado e expressivo, como se a própria madeira guardasse segredos. É testemunha de gerações, guardiã de histórias que não se apagam.

Hildebrando seguiu os passos do pai, integrando-se à Companhia de Reis do Ibitu e mantendo viva essa tradição que atravessa gerações. Com dedicação e respeito, tornou-se também guardião da cultura popular, fazendo da música um elo entre passado e presente.

Esse gesto, simples e profundo, revela o poder da memória e da herança afetiva. A viola não é apenas madeira e cordas, é história viva, é o som de Ibitu, é o elo entre gerações. José Gonçalves, ao deixar o instrumento ao filho, não transmitiu apenas música: entregou valores, identidade, raízes. E Hildebrando, ao preservar e apresentar esse legado, reafirma que a cultura se perpetua quando é tocada com amor.

A mesma fotografia também provocou outra emoção intensa: Cristina, professora visitante da mostra, reconheceu nela o próprio pai. A surpresa, seguida de lágrimas e sorrisos, revelou o poder das imagens, provocar encontros com o passado, reacender afetos, costurar histórias que pareciam adormecidas.

COMPANHIA DE REIS DA CACHOEIRINHA.

E como se não bastasse, a imagem ainda guarda mais tesouros: nela aparecem dois jovens que marcaram profundamente a história cultural da cidade de Barretos: Totó e Totózinho. Sobre eles, escreverei em outra ocasião, com o cuidado e a admiração que merecem.

Durante a exposição, moradores antigos também compartilharam uma história que permanece viva na memória oral da comunidade, um amor impossível, ao estilo “Romeu e Julieta”. Contam que dois jovens, de famílias que se opunham ao relacionamento, teriam cometido suicídio juntos. O rapaz, de origem síria, teria atirado na amada e, em seguida, em si mesmo. Outros relatos sugerem que a jovem foi arrastada para esse desfecho trágico. Dizem que os corpos foram encontrados com as mãos atadas por uma gravata, e que no local foram colocadas duas cruzes fincadas no chão. O tempo destruiu as cruzes que marcavam a tragédia, mas a história permanece viva, passada de pais para filhos, como um sussurro que resiste. Os moradores não souberam informar os nomes das famílias nem a época exata do ocorrido, mas o relato, forte e repetido por diferentes pessoas, merece o registro, pois continua a habitar a memória coletiva de Ibitu.

Uma exposição nunca se encerra em si. Ela é ponto de partida — não de chegada. Ao reunir imagens, objetos, histórias e afetos, ela amplia o repertório de quem a visita, mas também transforma quem a prepara. No meu caso, cada relato compartilhado, cada gesto de emoção me atravessou, me enriqueceu.

A exposição que montei em Ibitu não foi apenas uma mostra de memórias: foi um espaço de encontros. Encontros com o passado, com a identidade coletiva, com a sensibilidade de cada visitante. Vi olhos brilharem diante de uma imagem, ouvi histórias curiosas, senti a força de uma cultura que pulsa mesmo em silêncio.

Essas experiências demonstram que uma exposição não termina quando a desmontamos. Ela continua viva, despertando memórias, estimulando conversas, renascendo em lembranças. Ela provoca reflexões e, às vezes, como num gesto delicado, reconecta pessoas às suas raízes.

E é nesse movimento — entre o que se mostra e o que se revela — que o verdadeiro valor de uma exposição se manifesta. Porque mais do que ver, é preciso sentir. E quando isso acontece, o repertório se expande, a história se renova, e a cultura se perpetua.

E que ninguém pense que termina aqui. Ibitu é feito de histórias vividas, contadas, sussurradas. Ainda escreverei outros textos sobre este lugar que pulsa memória e identidade. Porque cada relato que emerge é como uma nova corda vibrando, e eu sigo ouvindo, recolhendo e partilhando

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