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O Anjo Invisível de Ibitu: Memórias de uma tragédia durante a festa de maio de 1962

 O Anjo Invisível de Ibitu: Memórias de uma tragédia durante a festa de maio de 1962

Dedicatória

Aos que lembram.  
Aos que viveram.  
Aos que choraram.  

Aos que continuam.

Este texto é dedicado à memória de Maria dos Anjos Balieiro, mulher de fé, mãe amorosa, festeira da comunidade, cuja partida inesperada transformou um dia de celebração em silêncio profundo.

É também dedicado a Juvenal Ribeiro Balieiro, seu esposo, que enfrentou a dor com dignidade.

A todos os filhos que carregaram esse luto com coragem.  
Aos netos, que herdaram a força silenciosa da memória.  
Aos bisnetos, que carregam no sangue a história de Ibitu.

Esta dedicatória é para vocês: descendentes de Maria dos Anjos e Juvenal, que nasceram do afeto, da fé e da coragem de um casal que marcou profundamente a vida de uma comunidade.

Que este texto seja mais do que um registro: 
Seja um abraço que atravessa gerações.  
Seja uma vela acesa na lembrança.  
Seja um retrato da dignidade que construiu raízes.

Que cada palavra aqui escrita seja também uma página do coração de vocês.  E que, ao lerem estas linhas, sintam o sopro suave de Maria dos Anjos — o anjo invisível desta família, que segue presente, na fé, na saudade, e no amor que nunca se foi.

A Aliomar Balieiro, guardião da casa, da história e dos legados da família, que abriu suas portas e seu coração para que esta memória fosse preservada e contada. 

A Armando Souza Santos, filho do saudoso músico seu Cazuza, que, ainda menino, foi amparo e testemunha da dor de um amigo, e que hoje, com generosidade, compartilha sua lembrança viva.  

E a todos os moradores de Ibitu, passados e presentes, que mantêm viva a essência de uma comunidade onde a fé, a dor e a esperança caminham juntas.

Que este texto seja não apenas registro, mas também homenagem. 
Não apenas lembrança, mas também semente.

O Dia em Que a Festa Silenciou

Era maio de 1962. Na pequena comunidade rural de Ibitu, o mês das mães também era tempo de fé. As festividades da igreja movimentavam o vilarejo com bandeirolas coloridas, cantos ensaiados e o campo de futebol tomado por jovens animados. Os festeiros daquele ano eram o casal Balieiro: Maria dos Anjos Balieiro e seu esposo, Juvenal Ribeiro Balieiro, figuras respeitadas, pais de muitos filhos e presença constante nas celebrações locais.

Na manhã do dia 27, como era costume, houve jogo de futebol. Os jogadores utilizaram o velho banheiro nos fundos da casa dos Balieiro, uma estrutura rudimentar, composta por um buraco no chão. Esse tipo de instalação era comum em comunidades rurais até meados da década de 1970: uma escavação profunda no solo, coberta por uma estrutura simples de madeira ou cimento, sem encanamento ou descarga. Já em desuso pela família, o espaço servia mais como depósito do que como sanitário. Era fundo, escuro, e ninguém imaginava que ali se esconderia uma tragédia.

Ao final da tarde, tudo parecia em paz. A entrada do santo estava pronta, a praça cheia de crianças brincando, e a comunidade aguardava o casal festeiro. Mas Maria dos Anjos não apareceu. Sem que se soubesse o motivo, ela foi até o banheiro do quintal, e o piso cedeu.

O que se seguiu foi pavor. Maria despencou. Estruturas de cimento atravessaram seu corpo. Gritos ecoaram pelo vilarejo. Vizinhos correram para ajudar, conseguiram retirá-la do buraco e a levaram para o quarto do casal. Mas os ferimentos eram graves demais. Maria faleceu ali, na cama, vítima de uma hemorragia intensa.

A festa foi cancelada. As prendas, antes destinadas à celebração, foram todas arrematadas pelo próprio viúvo, um gesto de dor e despedida. Armando Souza Santos, então criança, amigo de um dos filhos do casal, lembra com clareza da consternação que tomou conta do ar. Naquele dia sombrio, foi amparo do amigo. E até hoje, carrega a lembrança viva do que viu e sentiu.

Onde a Vida Continua

Décadas depois, fui recebida por Aliomar Balieiro na mesma casa onde sua tia Maria dos Anjos morreu. Com generosidade e emoção, ele me conduziu até o quarto, depois ao local do fatídico acontecimento. Hoje, ali cresce uma mangueira. Seus galhos se estendem ao céu, seus frutos alimentam a terra — como se a vida tivesse decidido continuar, silenciosa e fértil, sobre a dor.

O Jazigo e a Promessa de Eternidade

Maria dos Anjos Balieiro nasceu em 10 de fevereiro de 1921 e faleceu tragicamente em 27 de maio de 1962. Foi sepultada no cemitério da própria comunidade. No jazigo da família, construído em granito, repousam ela, seu esposo e alguns filhos. Como adornos, há uma cruz, uma escultura de um Cristo sofrido e, na gaveta do jazigo, a imagem da Sagrada Família — símbolos que expressam fé, dor e união.

Em sua lápide, repousa uma mensagem que ecoa até hoje entre os que a conheceram:

“Mas… não chorai! Eu serei o anjo invisível desta família!  

Saudades do seu esposo e filhos.”

Agradecimento às Fontes Vivas da Memória

Fontes primárias são registros diretos de um acontecimento: documentos, objetos, imagens e, sobretudo, testemunhos.

Ouvir quem viveu — ou quem herdou a memória de quem viveu — é uma forma de respeitar a história como ela aconteceu. É dar voz ao cotidiano, às dores e às alegrias que moldaram uma comunidade. São essas narrativas que revelam os detalhes esquecidos, os nomes apagados, os espaços transformados. E, mais do que tudo, são elas que mantêm viva a identidade de um povo.

Neste trabalho, os relatos de Aliomar Balieiro, de sua esposa Sebastiana, de Armando Souza Santos e de tantos outros que guardam lembranças do dia 27 de maio de 1962 são mais do que fontes: são alicerces. São eles que permitiram reconstruir, com respeito e verdade, o dia em que a festa silenciou.

A todos que compartilharam suas lembranças, meu mais profundo agradecimento.  

Este texto é também de vocês.

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