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Entre foguetes e atas: histórias e ironias das eleições de 1913
Nos livros de atas da Câmara Municipal, com páginas já desbotadas pelo tempo, repousam inúmeras histórias da política barretense. São registros que revelam não apenas os grandes discursos ou as disputas acaloradas entre vereadores, mas também os bastidores silenciosos: tensões, acordos, renúncias e até ausências que mudaram o rumo da cidade. Entre essas narrativas, uma se destaca e será o foco da crônica de hoje: a curiosa ausência do coronel Antônio Olympio, que, apesar de ter recebido votos suficientes para assumir uma cadeira, acabou ficando de fora do legislativo.
As atas são, por excelência, testemunhas das decisões. Não devem se perder em adjetivos ou floreios, devem ser objetivas. Em tese, não se deixam seduzir por paixões partidárias, não inflamam como os jornais da época. Limitam-se a narrar: quem falou, quem votou, quem se ausentou. Mas é justamente nessa sobriedade que reside sua força. Ao reler uma ata, o pesquisador percebe que cada palavra carrega o peso de uma decisão, cada registro é um fragmento de poder em movimento.

E é graças a elas que se descobre, por exemplo, que Antônio Olympio, em 1913, não assumiu uma cadeira de vereador por uma questão curiosa — e, convenhamos, até um pouco pitoresca.
A cidade ardia em disputas que iam muito além das urnas. Silvestre de Lima e Antônio Olympio, dois coronéis de temperamento indomável e ambição política inquebrantável, protagonizavam uma rivalidade que há anos alternava o controle do poder local. Seus grupos, conhecidos por todos, dividiam famílias, amizades e até negócios, transformando cada eleição em um verdadeiro campo de batalha.
Silvestre liderava os “araras” ou “silvestristas”, alinhados ao Partido Republicano Dissidente de São Paulo, opositores de Campos Sales. Do outro lado, os “pica-paus” ou “olympistas”, sob a chefia de Antônio Olympio, vinculados ao Partido Republicano Paulista e defensores do presidente. As divergências já não se apoiavam em debates sobre o regime — a República, pela qual Silvestre tanto se empenhara, já estava consolidada —, mas sim na luta pelo poder, na defesa da autonomia estadual e no controle da máquina política que sustentava as oligarquias locais.
As eleições municipais de 1913 foram agitadas. Denúncias de irregularidades, episódios de violência e um clima de tensão que ultrapassava os limites da cidade. Silvestre ampliava o embate na imprensa paulistana, denunciando fraudes e qualificações eleitorais clandestinas. Seus textos repercutiam intensamente na capital, construindo uma imagem de combatente contra os vícios do sistema eleitoral.
O Correio Paulistano, de 05 de novembro de 1913, registrou os números com precisão: 985 eleitores compareceram às urnas; 588 sufragaram pelos “araras”, enquanto 397 optaram pelos “pica-paus”. A diferença de quase duzentos votos consolidava a vitória de Silvestre de Lima, que reassumia a prefeitura para o triênio de janeiro de 1914 a janeiro de 1917. À época, o sistema era peculiar: cabia aos vereadores eleitos escolherem, entre si, quem ocuparia o cargo de prefeito. Assim, o chefe do executivo emergia do próprio legislativo — e, curiosamente, continuava a participar das sessões da Câmara, numa sobreposição de funções que tornava ainda mais estreita a relação entre os dois poderes.
A derrota, porém, não foi aceita com serenidade. Olympio ingressou com recurso, mas viu sua pretensão ser rejeitada. Em 28 de outubro de 1914, o Correio Paulistano noticiou o desfecho: o Supremo Tribunal Federal, por maioria absoluta, deu provimento à ação interposta por Sebastião Bernardes Ferreira, anulando um alistamento irregular promovido pelos oposicionistas. A decisão confirmou o resultado das urnas e sepultou, de forma definitiva, a estratégia dos “pica-paus”.
A notícia espalhou-se como fogo em palha seca. Boletins circularam pela cidade e logo multidões se reuniam para celebrar. Às 18 horas, cerca de três mil pessoas, acompanhadas pela Philarmônica Orphelina Barretense e sob o estrugir de foguetes, dirigiram-se à residência de Silvestre, saudado como “chefe político modelar”. O coronel Almeida Pinto discursou, exaltando sua liderança, e o coronel Silvestre respondeu com breve, mas brilhante alocução, encerrada com vivas ao governo do Estado e aos próceres republicanos. Nos distritos de Cajobi, Itambé e Laranjeiras, a decisão também foi recebida com entusiasmo.
O destino, contudo, reservava uma ironia a Antônio Olympio. Embora eleito, não chegou a ocupar uma cadeira no legislativo durante o triênio de janeiro de 1914 a janeiro de 1917. Foi superado nas urnas pelo próprio cunhado, Tarcísio Philadelpho Carneiro de Arantes, que garantiu a vaga. E, para completar o enredo, a cadeira acabou destinada a Joaquim Buck Filho, que havia recebido menos votos do que Olympio. A ata da sessão de posse registra o detalhe saboroso: Joaquim apresentou documentos comprovando o parentesco entre Olympio e Tarcísio — fato já conhecido por toda a cidade. Olympio, resignado, sequer compareceu. Afinal, à época havia uma cláusula de inelegibilidade que atingia relações de parentesco até o segundo grau.

Transcrição de trecho da ata “[…] é esta Comissão de parecer que seja declarado nulo o diploma expedido em favor do mesmo bacharel sr. Antônio Olympio Rodrigues Vieira e, em seu lugar, eleito e proclamado vereador à Câmara Municipal, para este triênio de mil novecentos e quatorze – mil novecentos e dezessete, o candidato contestante sr. Joaquim Buck Filho, Sala das Comissões […]”
E é nesse ponto que as atas revelam sua graça silenciosa. Sem elas, talvez a história se resumisse a boatos de esquina ou lembranças exageradas. Com elas, temos a prova documental de que, em Barretos, até os laços de família podiam virar campo de batalha político.
Assim se desenhou a eleição de 1913: marcada por disputas de diversas ordens, atravessada por rivalidades políticas e familiares, envolta em denúncias e recursos, mas também celebrada com foguetes, música e discursos inflamados. Um retrato vívido de uma época em que Barretos, mais do que nunca, foi palco de paixões políticas intensas, onde cada voto carregava o peso de uma batalha e cada decisão judicial repercutia como triunfo ou derrota de um exército inteiro.
Esses registros, aparentemente burocráticos, são na verdade o fio que costura a memória coletiva. Sem eles, a história se perderia em versões orais, em lembranças fragmentadas ou em narrativas enviesadas. Com eles, é possível reconstruir o cenário político com precisão: quem eram os protagonistas, quais eram os embates, como se desenhavam as alianças e quais derrotas deixaram cicatrizes.
As atas legislativas são, portanto, mais que documentos administrativos. São espelhos de uma época, guardiãs da memória política e social. Ao abri-las, não se lê apenas o passado: escuta-se o eco das vozes que, em cada sessão, decidiram os rumos de Barretos.
E talvez seja essa a sua maior relevância: mostrar que a história não se escreve apenas nos palanques ou nas manchetes, mas também nas páginas discretas de um livro de atas, onde o cotidiano da política se transforma em patrimônio da cidade. Afinal, como diriam os cronistas mais bem-humorados, em Barretos até as atas sabem contar boas histórias — e, às vezes, com mais graça do que os próprios políticos.
