Barretos encerra Semana Nacional de Trânsito com ação no Centro
Barretos: onde o capim engorda, o trem apita e cachorro cura sarampo


- Sueli Fernandes
Tudo começou com uma capela e um capim. Mas não era qualquer capim. Era o famoso capim gordura, que tinha o dom quase milagroso de transformar bois magros em bois gordos em tempo recorde. Com essa fama, Barretos virou imã de gente: tropeiros, comerciantes, sonhadores e até curiosos em busca de oportunidades. E assim, Barretos foi crescendo, engordando não só os animais, mas também sua reputação.
O jornal carioca O Globo, de 08 de agosto de 1876 registrou que: “Os terrenos que rodeiam Barretos são notáveis pelas riquíssimas pastagens que nele crescem naturalmente desde que se destroem qualquer porção de mata. O gado adquire proporções enormes sem grande trabalho para o criador, o pelo é liso e brilhante, e todo o aspecto do animal revela uma vitalidade superior a de qualquer outro das localidades por onde temos viajado. Informam-nos pessoas entendidas que esta superioridade do gado dos Barretos é devido ao capim gordura, que aí cresce independente de cultura”.
Barretos ingressa no século XIX como o “Eldorado da Pecuária”. O gado vinha em comboios de Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso, atraído pelas pastagens que mais pareciam bufês bovinos. E o crescimento não parou por aí, foi dia após dia, boi após boi, suor após suor, graças à coragem e à teimosia (no melhor sentido) dos que decidiram chamar Barretos de lar.
Com tanta gente chegando, foi preciso redesenhar o mapa urbano. A cidade se espreguiçou, ocupando novos cantos e preparando terreno para o progresso. E foi aí que entrou em cena um personagem que merece aplausos de pé: Silvestre de Lima. Homem culto, acadêmico no Rio de Janeiro, chegou à cidade com espírito científico e uma saudável dose de ceticismo. Desconfiava das crendices locais, como todo bom universitário deve ser. Mas, como acontece com muitos que se deparam com a sabedoria popular, Silvestre foi surpreendido pelos resultados práticos dos curandeiros da região. Justo ele, que mantinha uma farmácia tradicional no local.
O episódio que o fez rever seus conceitos foi pessoal: seu irmão, José Vicente de Lima, sofria de eczema e, após dois anos de tratamento com especialistas da capital sem melhora, foi curado em apenas oito dias por uma fórmula oferecida por Joaquim Thomé, um ancião de 80 anos, acaboclado e respeitado na cidade. Silvestre, impactado, comprou a fórmula e passou a divulgá-la em jornais pelo país, buscando uma explicação mais cientifica, inclusive no O Pharol, de Juiz de Fora, edição de 9 de junho de 1900.
Mas, Silvestre não ficou só no mundo das rezas e raízes. Foi um dos grandes articuladores do progresso da cidade, responsável pela introdução de duas modernidades que atraíram ainda mais imigrantes para Barretos: o trem (1909) e o frigorífico (1913).
E onde há gente, há saúde (ou pelo menos a tentativa de mantê-la). Em 1890, o prático farmacêutico Jeronymo de Almeida Silvares abriu sua farmácia, autorizado pela Inspetoria Geral de Higiene. Substituiu o republicano Chico Boticário, que trocou Barretos por Ibitinga, talvez em busca de novos ares ou de um capim menos gorduroso. Jeronymo, que até então cuidava de suas terras, virou referência na cidade. Além de farmacêutico, era sogro do coronel Almeida Pinto, e figura respeitada na comunidade.
Segundo os estudos do médico Wilson Ferreira de Mello, Barretos viveu uma convivência pacífica (e até afetuosa) entre a medicina oficial e o curandeirismo. E não pense que curandeiro era sinônimo de ignorância: coronéis e até gente letrada se aventuravam na arte da cura. O cel.Marcolino Osório de Souza, por exemplo, mantinha uma farmácia em sua fazenda na Bagagem e distribuía remédios e raízes de graça. Já os benzedores misturavam rezas com raízes, e quem duvidava que tentasse sarar sem eles.
Agora, prepare-se para a fórmula mais exótica da história barretense: chá de fezes de cachorro — bem secas e branquinhas, apelidadas de “jasmim de cachorro” — misturadas com flores de sabugueiro. Receita contra sarampo. Sim, você leu certo. E não, não é piada. Está documentado no Álbum do Centenário de Barretos, página 107. Wilson, nascido em 1910, dedicou-se a coletar essas pérolas da sabedoria popular e deixou tudo registrado com carinho e rigor.
E já que estamos falando de saúde, aqui vai uma curiosidade digna de roteiro de novela: segundo registros de Osório Rocha, por volta de 1890, Barretos recebeu a visita de um falso médico. Tratava-se de João Batista Soares, que lutou na Guerra do Paraguai ao lado do primo, este sim, estudante de medicina. Com a morte do primo em combate, João Batista assumiu sua identidade e veio parar em Barretos, onde exerceu a medicina sem nunca ter frequentado uma aula sequer. Um caso de impostura que, curiosamente, passou despercebido por algum tempo. Afinal, naquela época, o que valia era o resultado, e, dizem, ele até curava.
Com o dinheiro circulando e o gado movimentando a economia, outros profissionais da saúde começaram a se interessar por Barretos. Em outubro de 1891, o jornal Correio Paulistano registrou a presença do Dr. J. D’Andrade, um dos primeiros médicos a anunciar seus serviços na cidade. Já em 1893, o Dr. João Baptista Andrade foi nomeado Delegado de Higiene, cargo que refletia a preocupação crescente com epidemias e a necessidade de manter a cidade limpa e saudável. Mas sua estadia foi breve. Só em 1904 Barretos passou a contar com um médico definitivo: o Dr. Joaquim Carvalho de Ramos, que ficou até seu falecimento.
Esses episódios mostram que Barretos não cresceu apenas em tamanho, mas também em complexidade. A cidade virou palco de encontros entre saberes, crenças, trilhos e bois. E tudo isso graças à força de quem acreditou que aqui era mais que um ponto no mapa, era um lugar para viver, curar, trabalhar e, por que não, tomar um chá de jasmim de cachorro (com sabugueiro, claro)
