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Silvestre de Lima: poesia, resistência e legado em Barretos

 Silvestre de Lima: poesia, resistência e legado em Barretos

 No Dia da Consciência Negra, é impossível não lembrar de figuras que transformaram nossa história e identidade coletiva. Entre elas, destaca-se Silvestre Gomes de Lima, pioneiro da imprensa barretense e único prefeito negro da cidade, cuja trajetória une literatura, política e resistência. Mais que poeta, abolicionista e republicano, Silvestre foi voz ativa contra a escravidão e construtor de caminhos para um Brasil mais justo. Nascido em 1859, na pacata Freguesia de São Sebastião da Ventania, em Minas Gerais, cresceu entre montanhas e tradições, mas carregava consigo uma inquietação silenciosa que se tornaria palavra, denúncia e luta.

Desde cedo, Silvestre revelou talento para os estudos. Aprendeu as primeiras letras em sua terra natal e seguiu para Carmo do Rio Claro, onde aprofundou-se nas letras e no latim. Essas habilidades o colocaram entre os intelectuais em ascensão nos anos 1880, uma época em que escrever era mais que arte: era afirmação, era conquista.

Aos 17 anos, foi levado pelo pai para o Rio de Janeiro para cursar medicina, uma jornada rara e prestigiada para um jovem do interior mineiro. O Almanach Sul Mineiro, em 1880, registrou com orgulho o prosseguimento de seus estudos, afinal poucos jovens cursavam faculdades naquela época: “Fallamos de Silvestre de Lima, o distincto acadêmico da escola de medicina, o poeta de imaginação brilhante e fecunda…”.

Retrato de Silvestre em bico de pena assinado por M. J. Garnier, publicado em livro dedicado a retratar os principais intelectuais do século XIX. Fonte: Sonetos Brasileiros – desenhos dos sonetos (edição completa), 4ª. Edição, sem data, acervo da Biblioteca Digital Luso-Brasileira.

Entre idas e vindas, entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, numa dessas viagens, sua vida tomou um rumo inesperado. Ao pernoitar numa fazenda, Silvestre foi acordado por gritos de dor. Ao correr para o pátio, presenciou uma cena brutal: um escravizado sendo chicoteado. Empunhando uma garrucha, apontou-a ao fazendeiro que lhe dava pouso. O clima ficou tenso, seus familiares intervieram e Silvestre partiu. A violência daquela madrugada não apenas marcou a sua memória, ela amadureceu sua causa. O abolicionista que já se revelava em Silvestre tornou-se mais firme, mais combativo, e sua pena passou a carregar o peso da urgência histórica.

A cena mais tarde foi eternizada em seu poema A Escravidão, publicado em formato de livreto, em 1880.

Por décadas, essa obra foi considerada perdida, restando apenas relatos. Historiadores e pesquisadores da história local lamentaram profundamente a sua perda em suas obras, como “Barretos de Outrora” e “História do Desenvolvimento Cultural de Barretos”, de Osório Rocha e Ruy Menezes respectivamente. Felizmente, após longa busca, eu encontrei e adquiri um exemplar em 2014 junto a um colecionador de obras raras em Portugal, resgatando assim uma peça fundamental da memória literária e política de Silvestre.

Na introdução do poemeto, ele descreve o episódio que o despertou para a causa abolicionista:

Eu estava hospedado em uma fazenda um dia,

Era alta noite, e eu dormia sossegado,

Quando julguei ouvir uns gritos de agonia

Que partiam de dentro… Ergui-me estonteado

E abri a janela… A treva era sombria,

Porem o largo pateo estava iluminado

Por imensa fogueira, e eu pude-revoltado

Vêr o crime feroz que ali se cometia…

Era o castigo a um preto… Os látegos cortantes

Rasgavam-n’o e o sangue em ondas triumphantes

Coalhava em derredor da victima açoutada!…

Senti então o horror que causa uma injustiça…

E, arrancando uma espada às forjas da Justiça,

Eu prometti vingar a raça escravizada!…

Página de abertura do livro “A Escravidão”. Acervo de Sueli Fernandes.

A partir desse episódio, sua escrita tornou-se denúncia. Com versos pungentes, expôs o horror das senzalas, o trabalho forçado, a opressão cotidiana. Sua poesia não apenas descrevia — ela clamava. Era um grito contra o silêncio da barbárie, uma convocação à consciência.

Mais do que médico, queria um país livre. A medicina representava o progresso técnico, mas não curava a chaga da escravidão. Por isso, abraçou a causa abolicionista com fervor, abandonando a medicina. Sua inserção na sociedade intelectual carioca foi marcada por posicionamento crítico e sensibilidade social. Cercado por mentes inquietas e corações ardentes, encontrou o terreno fértil para deixar sua marca na história.

Barretos: imprensa e política

Foi com esse espírito transformador que, anos mais tarde, já em Barretos, Silvestre de Lima fundou a imprensa local, tornando-se editor-chefe do jornal O Sertanejo, em 1900. Coincidentemente — ou talvez não — é esse mesmo nome que hoje intitula o jornal onde esta crônica é publicada. Uma escolha carregada de significado, idealizada pelo jornalista Igor Sorente como forma de resgatar e homenagear a memória da imprensa barretense e seu pioneiro negro.

Primeira edição do Jornal O Sertanejo, 31.03.1900. Acervo: Museu Ruy Menezes.

Mas sua contribuição à cidade não parou por aí. Silvestre também entrou para a história política de Barretos como o único prefeito e deputado estadual negro que o município já teve. Um feito extraordinário, ainda mais relevante quando lembrado neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.

Legado

Ao revisitarmos sua trajetória nesta data simbólica, celebramos não apenas o talento literário de Silvestre, mas sua coragem em transformar dor em palavra, e palavra em luta. Sua poesia foi resistência. Sua vida, legado. Que sua memória continue a inspirar novas vozes, novos versos e novas consciências — especialmente hoje, quando reafirmamos o valor da presença negra na construção de nossa cidade e de nosso país.

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