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O telefonema que veio do além (quase)

 O telefonema que veio do além (quase)
  • Por Sueli Fernandes

Era véspera de Finados. A casa mergulhada naquele silêncio típico da data, quando o telefone resolveu quebrar o clima, e não foi com qualquer ligação. Do outro lado da linha, a voz animada do meu confrade Jota Carvalho, poeta de mão cheia e contador de causos que dariam inveja a qualquer romancista. Ligou como quem carrega uma joia no bolso e não vê a hora de exibir o brilho.

Jota, ou melhor, Jesus Aparecido de Carvalho, é daqueles personagens que parecem ter nascido com uma história pronta para virar crônica. Há mais de três décadas, comanda as apresentações da Queima do Alho com a desenvoltura de quem nasceu sob os refletores. Mais recentemente, assumiu também o Palco Culturando, no Parque do Peão, como quem troca de chapéu, mas não de alma. Já foi assessor do deputado estadual Nadir Kenan por três mandatos e até se aventurou nas urnas como candidato a vereador em Barretos, porque, afinal, quem disse que poesia e política não se misturam?

Mas nem só de aplausos se constrói um artista. Jota, alma inquieta dos palcos, também enfrentou os vendavais da vida com a coragem dos que não se curvam. Em um episódio sombrio, reagiu a uma ameaça de morte e foi levado a julgamento. Saiu inocentado, mas não ileso. O cárcere, longe das luzes e perto do abismo interior, tornou-se palco de uma metamorfose silenciosa.

Na cela nº 4 da cadeia pública de Barretos, em 1967, nasceu não apenas um poema, nasceu um novo homem. Entre grades frias e madrugadas insones, Jota descobriu que a dor pode rimar, que o silêncio pode cantar. Ali, onde o tempo se arrasta e a alma se desnuda, ele encontrou sua verdadeira voz: a do poeta.

Foi nesse cenário de despedidas e descobertas que surgiu “Tristeza”, seu primeiro poema, marcado pela angústia de quem vê o mundo por trás das grades. Um lamento, uma confissão, um grito contido:

Esse foi o primeiro sopro lírico de um artista renascido. Desde então, Jota não apenas escreve, ele cura, diverte, transforma. Suas palavras, lapidadas no cárcere da dor, hoje ecoam em plateias como bálsamos de esperança e beleza.

Naquela ligação, Jota queria me contar uma história que o havia tocado fundo. Tinha lido minha crônica “Geografia da dor: o que os túmulos revelam” e, ao assistir a uma matéria na EPTV (sul de Minas) sobre uma jovem de Alfenas-MG, lembrou de mim. E quando Jota lembra de mim, é porque vem história boa.

Doralice, a estudante que virou lenda

Doralice de Ávila. Nome de personagem de romance, destino de tragédia grega. Faleceu aos 21 anos, vítima de leucemia, sem realizar o sonho de cursar medicina. Era estudiosa, sonhadora e adorava ler. Também gostava de ensinar literatura às pessoas. Mas foi na morte que sua história ganhou contornos quase místicos.

Seu pai, num gesto de amor que desafia o tempo, mandou esculpir sua imagem com um livro nas mãos, símbolo do sonho interrompido, para adornar sua lápide. E como se isso já não bastasse para apertar o coração de qualquer um, o túmulo ganhou um epitáfio em forma de poesia, escrito por seu tio, também poeta, como o Jota. Mas não um tio qualquer: Zé de Ávila, pseudônimo de José de Ávila, nascido em 1904, em Alfenas/MG e falecido em 1991, em Barretos. Romancista, contista, trovador e membro de diversas academias e associações literárias, inclusive da nossa querida Academia Barretense de Cultura, publicou mais de vinte livros.

Túmulo de Doralice, intercessora dos estudantes em Alfenas-MG.
Fonte: G1 – Globo – Sul de Minas.

O poema, singelo e devastador, que eternizou a dor da família:

 “Fora para a entidade.  

Ai, Dora, que coisa atroz!  

Tristeza, dor e saudade  

tomaram conta de nós!”  

 — Zé de Ávila

Desde então, Doralice virou uma espécie de intercessora dos estudantes. Seu túmulo é o mais visitado do cemitério, atraindo estudantes de outras regiões e até de outros países. Jovens deixam ali bilhetes, cadernos, livros e até docinhos, como quem oferece carinho em troca de inspiração e de aprovação em vestibulares e em concursos. Uma devoção espontânea, nascida da dor e alimentada pela esperança.

Jota, o imortal (literalmente)

Enquanto ouvia a história, lembrei de outras tantas do próprio Jota. Ele anda enfrentando uns perrengues de saúde, e a assistência médica, digamos, não tem sido digna de soneto. A demora por uma cirurgia o levou para Minas Gerais, mas Jota é desses personagens que parecem ter morrido e voltado, e não é força de expressão.

Aliás, ele já morreu. No papel. Há alguns anos, fui surpreendida por uma nota de falecimento dele divulgada pela AGCIP. Levei um susto! Liguei correndo, porque Jota não seria doido de morrer sem me avisar. E não é que ele atendeu? Vivíssimo e rindo da confusão. Brinquei que ele teve o privilégio raro de ler em vida o que escreveriam sobre ele morto. E, claro, adorou.

E, falando em memórias, em 2015 Jota foi convidado para uma participação especial no CD da cantora Celita, ninguém menos que a “rainha da canção rancheira”. Na época, ele estava sem carro. Resultado? Lá fomos nós: Eu, Samir e Jota, rumo a Pirassununga, numa verdadeira caravana cultural. Foi lá que ele gravou “Barretão – Orgulho barretense”. Mas, o seu maior sucesso é “Relato do Touro Bandido”, com diversas gravações e participações ao longo dos anos. A narrativa épica do lendário touro virou quase um patrimônio oral.

Ecos que atravessam gerações

Mas a história não parou por aí. A crônica sobre o cemitério reverberou em outras almas. O jornalista Patrício Augusto, por exemplo, compartilhou comigo uma verdadeira saga genealógica sobre as origens do avô, e tudo começou justamente no cemitério. Foi lá, entre registros, lápides e lembranças, que ele encontrou pistas que o levaram a investigar documentos, cruzar datas e reconstruir a trajetória familiar. Essa busca tem permitido a ele e à família pleitearem a cidadania espanhola. Um roteiro digno de romance histórico, com direito a reviravoltas e descobertas emocionantes.

Vozes que ecoam entre lápides

E aí que a gente percebe: os cemitérios não são apenas moradas de silêncio e de dor. Eles guardam memórias, curiosidades, afetos e histórias que insistem em viver. Cada lápide é uma página de um livro que não foi fechado. Todos os cemitérios têm muito a nos contar – basta saber ouvir.

Barretos, por exemplo, também tem seus santos populares, figuras que atravessaram o tempo e continuam presentes na fé e na lembrança das pessoas. Mas esses merecem um capítulo à parte. Em outro momento escreverei sobre eles e sobre o Cemitério da Paz.

Escrever é acender luzes

Fiquei encantada com as conversas que esse texto me proporcionou. Veja só: uma crônica sobre o cemitério do Ibitu, escrita com afeto e curiosidade, acabou abrindo portas para histórias de vida, de morte, de memória e de pertencimento. Porque, no fim das contas, escrever é isso, tocar o outro, abrir janelas, acender luzes em lugares que pareciam esquecidos, e deixar que as histórias façam o resto.

E, às vezes, tudo começa com um telefonema na véspera de Finados.

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