Onde a verdade encontra a democracia.
DESDE 2015

Ibitu: Onde o Vento Tem Voz e a História Tem Alma

 Ibitu: Onde o Vento Tem Voz e a História Tem Alma

Ibitu não é apenas um ponto no mapa. É um ponto de exclamação na história, uma vírgula entre o passado e o presente, e talvez até um parêntese onde o tempo repousa para ouvir o vento. Cercado por colinas que parecem cochichar segredos ao amanhecer, esse distrito de Barretos é um lugar onde o ar não apenas circula: ele narra. E narra com propriedade, pois “Ibitu”, do tupi-guarani, significa “vento”. Nome mais apropriado, impossível. Cada brisa que passa parece trazer um recado ancestral; cada rajada, uma opinião sobre os acontecimentos locais.

Durante a montagem de uma exposição na praça central, o vento resolveu se manifestar. Não como mero fenômeno meteorológico, mas como personagem principal. Revirava papéis, derrubava traineis, desafiava estruturas, parecia querer soprar vida nas histórias que eu tentava contar. Era como se o próprio Ibitu estivesse ali, inquieto, impaciente, querendo dar sua versão dos fatos. E eu, claro, tentava contornar sua rebeldia com barreiras improvisadas, enquanto ele zombava pelas frestas.

Foi nesse embate entre a curadora e o vento que surgiu a pergunta que paira no ar como folha seca em redemoinho: por que Ibitu, com tanta história e identidade, nunca se tornou município? A resposta não está em documentos oficiais que, aliás, parecem ter sido levados pelo vento. Mas talvez esteja nas entrelinhas do tempo, nas curvas da estrada ou nos olhares atentos dos moradores, que também se perguntam, silenciosamente, o que impediu o florescer completo da vila. Eles buscam respostas — não apenas nos arquivos ou nas promessas políticas, mas nas conversas de fim de tarde, nas lembranças dos mais velhos, nas pausas longas entre uma rajada e outra.

Afinal, Ibitu era promissor. Teve duas igrejas, duas farmácias, delegacia, cadeia, mercados e um comércio ativo que movimentava a região. Era ponto de encontro, de fé, de trocas e de histórias. Tudo isso parece ter sido registrado não apenas em papel, mas também no vento que sopra memórias como quem insiste em não deixar que o tempo apague o que foi vivido.

Porque há perguntas que não se calam, mesmo quando o vento tenta soprá-las para longe.

Igreja de São Sebastião, Ibitu. Registro de Sueli Fernandes.

Da Origem: Passa-Tempo, Itambé e o Batismo Ventoso

Antes de ser Ibitu, o lugar atendia por outros nomes. Em 1904, foi criado pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Distrito de Paz de Itambé, nome herdado de uma fazenda da região, substituindo o distrito policial de Passa-Tempo — outro nome de fazenda, outra história para contar. Passa-Tempo tem versões curiosas: dizem que um corredor boiadeiro (percurso histórico das comitivas de gado) passava por essas terras, onde as tropas paravam para descansar ou, literalmente, passar o tempo. A família Balieiro, influente na região, foi dona dessas terras.

Na época da criação do Distrito de Paz, Ibitu já contava com mais de 3 mil habitantes distribuídos em 100 casas e um cemitério em funcionamento. Nem o município nem o Estado tinham prédios por lá, mas o juiz João Baptista Martins de Menezes, inquerido pelo governo do Estado de São Paulo sobre a criação do distrito, garantiu que havia construções particulares “decentemente erguidas” e prontas para receber audiências e demais atos do juízo de paz. Segundo ele, a criação do distrito era conveniente para o serviço público, especialmente para o registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos.

Sob o projeto de lei nº 30 de 1904, a Câmara de Deputados do Estado de São Paulo aprovou a criação do distrito de Itambé, anexado a Barretos. A oficialização aconteceu por meio da Lei Estadual n.º 1.141, de 16 de novembro de 1908. Mas a instalação só ocorreu em 1910 — e foi uma festa daquelas que o vento ainda comenta.

A Festa Que o Vento Não Esqueceu

O Correio Paulistano, em 19 de março de 1910, registrou com entusiasmo: “Na madrugada do dia 9, uma salva de tiros rompeu a aurora do dia, anunciando a conquista de Itambé. A banda musical ‘Orphelina Barretense’ percorreu as ruas, engalanadas com arcos, festões e bandeiras.” Às 10h, chegaram em carro o juiz João Baptista de Menezes, o prefeito coronel Silvestre de Lima e o major Elyseu F. de Menezes, recebidos com indescritível entusiasmo ao som do Hino Nacional e muitos foguetes.

Cartão postal de 1917, em destaque o icônico Ford modelo T, circulando pela rua 20 em Barretos. Esse era o automóvel da época. Acervo: Museu “Ruy Menezes”.

Teve almoço, brindes, música e alegria. Às 17h, foram empossados os primeiros juízes de paz eleitos pelo povo: Francisco Xavier Ribeiro, Herculano Alves Taveira e João Borges de Siqueira. A comemoração se estendeu até às 3h da madrugada, com uma soirée (de origem francesa significa reunião ou outro tipo de festividade, que ocorre à noite) animada. No dia seguinte, novo almoço foi servido na casa de Paschoal Olivieri, onde o juiz João B. Menezes ergueu um brinde ao anfitrião, chamando-o de “um dos maiores propugnadores do progresso de Itambé”. O gesto foi retribuído com brindes ao juiz, ao prefeito pelo apoio — e, claro, ao vento, que deve ter se divertido com tanto entusiasmo.

Enfim, Ibitu

Sua denominação foi alterada de “Itambé” para “Ibitu” pelo Decreto-lei Estadual nº 14.334, de 30 de novembro de 1944

E Ibitu, Cadê Sua Emancipação?

Enquanto outros distritos como Vila Olímpia e Laranjeiras, também anexados a Barretos por leis estaduais em 1906, evoluíram para municípios, Ibitu enfrentou dificuldades, tempestades severas e diminuiu… arrasada pelo ciclone de 1926, se reconstruiu, mas não se desenvolveu. No Censo de 2022, registrou 1.659 habitantes — praticamente a metade que tinha por ocasião de sua criação. Teria sido efeito do êxodo rural intenso nas décadas de 1960 e 1980? Barretos seduziu os filhos da vila com promessas de futuro?

Não há respostas conclusivas. Mas há quem prefira uma explicação mais poética — ou mística. Uma lenda antiga, contada com aquele humor típico do interior, diz que padres, insatisfeitos por motivos nunca esclarecidos, lançaram uma maldição: “Ibitu jamais irá para frente.” E os moradores, com um sorriso no canto da boca, repetem a história como quem sabe que toda boa lenda tem um fundo de verdade… ou pelo menos de encanto.

Onde o Vento Sopra Nomes e Espalha Memórias

Passa-Tempo, Itambé, Ibitu — três nomes, três fases, três sopros de identidade. O nome atual faz jus à geografia: a vila se assenta num vale onde o vento é presença constante, quase residente fixo. Ali, o passado não está enterrado, mas espalhado no ar. E mesmo sem emancipação política, Ibitu carrega uma autonomia afetiva — uma independência simbólica que nenhum decreto pode conceder.

Porque há lugares que não precisam de título para serem grandes. Basta que o vento os reconheça.

Relacionado

Ops, você não pode copiar isto!