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Ibitu: fé, fúria e memória de um povo que resiste

 Ibitu: fé, fúria e memória de um povo que resiste
  • Por Sueli Fernandes

Ibitu, distrito rural de Barretos, guarda em sua história marcas profundas deixadas pela natureza, pela dor humana e pela força da fé. Já foi Passa-Tempo, depois Itambé, até tornar-se Distrito de Paz em 1904. Com cerca de 3 mil habitantes e 100 residências à época, o povoado cresceu entre encontros, tradições e desafios que moldaram sua identidade.

Em 1926, um ciclone devastador atingiu Ibitu com uma força que parecia saída de um pesadelo. Foram doze minutos de puro terror — tempo suficiente para arrancar telhas, derrubar casas inteiras e tombar árvores que bloquearam completamente o acesso ao distrito. O único sinal de que algo estranho se aproximava eram os uivos dos cães. A tempestade pegou todos de surpresa. Tomados pelo pânico, os moradores se esconderam como podiam: debaixo de camas, atrás de móveis. Pedras de granizo quebravam telhas e cobriam os pisos das casas. Quando o vendaval finalmente cessou, o silêncio era tão assustador quanto o barulho que o precedera.

Cenário de devastação do distrito após o ciclone. Acervo: Museu “Ruy Menezes”

Aos poucos, as pessoas saíram às ruas, chamando por vizinhos, amigos, familiares. Os que não respondiam eram procurados sob os escombros, entre destroços e lágrimas. O cenário era de destruição — mas também de solidariedade. Muitos atribuíram o fenômeno à famosa “praga do padre”: uma maldição lançada, segundo a tradição oral, por um sacerdote que não teria sido bem recebido por um proprietário de pensão local. Há quem jure que, ao se despedir do povoado, o padre foi derrubado do cavalo por um salto inesperado do animal, provocado por sabugos de milho estrategicamente colocados sob a sela. O padre caiu, o cavalo se irritou, e a lenda nasceu com gosto de vingança e milho.

A tempestade ganhou repercussão nacional. “Ciclone”, “Furacão”, “Catástrofe” — eram os termos usados pela imprensa para descrevê-la. Devido à distância e aos lentos meios de transporte e comunicação da época, as notícias eram mais alarmantes do que a realidade: “150 mortes no Ibitu!” Felizmente, não houve perdas humanas. Cinquenta pessoas se feriram, a maioria com fraturas, mas nada grave.

O que o vento tentou apagar, a fé reconstruiu. Com coragem e união, os moradores reergueram suas casas. Duas igrejas foram destruídas. Apenas a de São Sebastião foi reconstruída. Já a igreja de Nossa Senhora da Abadia permaneceu apenas na memória dos antigos moradores — e em raros registros fotográficos. Mas, acima de tudo, os vínculos se fortaleceram. Porque em Ibitu, a fé não é apenas crença — é ferramenta de sobrevivência.

A memória do distrito também carrega uma dor que atravessou gerações: o assassinato de Maria Aparecida da Conceição, uma jovem de apenas 13 anos, morta pelo próprio padrasto em 10 de março de 1942. A recusa da menina em aceitar suas investidas teria motivado o crime, consumado por um disparo seguido de cinco facadas. O autor se entregou espontaneamente, dizendo ser “um homem perdido” e indicando o local onde estava o corpo.

O caso, além de brutal, envolveu relatos impressionantes. Dizem que, enquanto o corpo aguardava a chegada da autoridade policial na antiga cadeia do Ibitu — hoje local do poço artesiano — o sangue não cessava de pingar. Mesmo após a limpeza, o chão continuava a revelar vestígios vivos. Em Barretos, o médico legista teria enfrentado dificuldades para retirar a faca do corpo, sendo necessário chamar o próprio autor do crime. Ao removerem suas algemas, o sangue teria jorrado com intensidade, escorrendo pela lâmina ao ser retirada, causando espanto entre os presentes.

No local onde Maria Aparecida foi assassinada, ergueu-se uma capela — hoje espaço de devoção, oração e acolhimento. Ao lado dela, há um brejo silencioso, onde sua irmãzinha, diante do terror, se escondeu até que tudo passasse. O contraste entre o sagrado e o sombrio permanece ali, como testemunho da dor e da esperança que moldam a história de Ibitu.

Capela erguida no local onde Maria Aparecida foi assassinada e o brejo onde a irmão se escondeu. Registro de Sueli Fernandes

A dor, no entanto, deu lugar à devoção. Tocadas pela inocência de Maria Aparecida, pessoas passaram a visitar seu túmulo, chamando-a de “santa”. Com o tempo, essas visitas se tornaram romarias, acompanhadas de orações, pedidos e promessas. Assim nasceu a fé popular na Santinha do Ibitu — símbolo de pureza, resistência e esperança. Seu túmulo, no Cemitério da Paz, é hoje o mais visitado, revelando a força espiritual que sobrevive à violência.

Túmulo da Santinha no Cemitério da Paz. Registro de Sueli Fernandes

Na Praça Central do distrito, outro símbolo da memória coletiva se revela: os bancos. Gravados com nomes de pessoas e empresas que ajudaram a construir a identidade local, eles guardam afetos, encontros e homenagens silenciosas. Mesmo que muitos já não existam fisicamente, continuam presentes na lembrança, resistindo ao tempo como testemunhas da história. São convites ao cuidado com o que nos conecta ao passado — e ao respeito por tudo que nos trouxe até aqui.

Ibitu é, acima de tudo, um lugar onde fé e memória caminham juntas. Onde a dor vira oração, o vento vira história, e a esperança se renova a cada gesto de reconstrução. Porque em Ibitu, até a tempestade aprendeu que não se brinca com quem tem raízes profundas.

E é por isso que eu convido você, leitor, a visitar o distrito do Ibitu no fim de semana de 26 a 28 de setembro. Estamos organizando o Festival CultRural — uma celebração da tradição, das conexões entre o urbano e o rural, e de difusão da memória! Venham desfrutar de um ambiente agradável, saborear uma comida da roça, prestigiar os artistas barretenses e conhecer a exposição que preparei com muito carinho, dedicada à história viva desse lugar que resiste, floresce e emociona.

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